Há qualquer coisa de feminina na minha solidão de meio século. Em cada superfície minha impera uma consternação austera, um aprumo botânico, um não-sorriso sorridente. Sou delicado com as coisas indelicadas, e com as delicadas sou rabugento, distante e taciturno.
Há, julgo, uma beleza nas sombras das minhas ferramentas. Um qualquer motivo de luz que eu não compreendo. É uma fagulha no espaço, inquilina do meu quintal – um pequeno defeito de luz que encontro em fotografias antigas, sem saber bem onde se encontra o erro, se na lente, se na película, se em mim.
Risca a agulha um vinil emprestado há trinta anos que me não devolveram ainda. Ouço rádio, mas sem escutar. Rádio são réguas e lápis, pistolas de solda, cheiro a álcool etílico embebido em algodão, chávenas de café aquecendo círculos em jornais dominicais, beatas queimando mantas e, sobretudo, um sol trabalhador que horas depois dá lugar a uma amarelada luz com tosse.
Há algo de feminino naquele fumo que adensa o meu escritório e faz liquidificar os meus olhos, sob um frio painel de cristais líquidos. Há um turvar das cores turvas bebido de um ensonar de sons. Uma dor no meu peito. Sentei-me, grave, na cadeira de longa data, e mirei mirrado um ponto na parede.
Caíam-me lágrimas que não eram minhas. Distorciam meus quadros, serigrafias, calendário. Banhavam-me Abril, queimavam-me Agosto, e eis-me sem ver Maio, talvez para sempre.
Outra dor.
Puxei o telefone e disquei-o com dez anos. Disquei 112 no maravilhoso invento. Cento e doze, escreveria. Que bonita caligrafia a minha, orgulho de qualquer tia de cabelo preso. Falei a morada à voz – aquela onde cresci com dificuldade. A mesma gaguez de rua de quando crescia, triste rua agora.
Dei por mim ao Deus dará, enfeitado de um pijama, enjeitado numa maca quase cama, de peito num oito, rolando através do trânsito da noite. Quatro rodas de borracha e uma sirene, pensei fechando os olhos. Uma sirene, serena sirene, que se arrastava no tempo, e riscava faróis no espaço das estradas e autoestradas. Debatia-se meu tempo numa botija de desinfectado oxigénio… e lágrimas de meu corpo salgavam-me a boca babada.
Abri os olhos. Como que nadando num aquário em meu redor, flutuavam peixes com forma de pessoas. Ninguém me prestava atenção, salvo talvez a esverdeada serpente que saltitava no monitor, porventura contente por me ver vivo.
Pingavam-me os olhos para um bonito tecido que me vestiram. A branquidão do lençol trazia-me aquele conforto de mãe. Encostada, pacífica e elegantemente a mim, para minha paz, lá estava ela, a minha silenciosa salvadora – a intravenosa. Espreitava o catéter do meu braço. Pingavam-lhe as rigorosas doses acima de mim, num regulador transparente, que me doseava com olhar de mulher meus nutrientes e medicação. Pingava-me, portanto, o alimento num fluído transparente.
Onde conseguiria eu ver através da refeição se não aqui? Cores de almoços de domingo! Verdes, laranjas, até azuis bem temperados na salada, entre vermelhos mal passados, castanhas acastanhadas e brancos pastosos de arroz de alho. De alguma forma foram perdendo os pigmentos até nenhum terem. Meu estômago desolava-se tanto quanto eu, e esperávamos juntos, ambos vazios e ácidos na nossa inutilidade.
Guilherme Mesquita, Argumentista
guismesquita@gmail.com
Há, julgo, uma beleza nas sombras das minhas ferramentas. Um qualquer motivo de luz que eu não compreendo. É uma fagulha no espaço, inquilina do meu quintal – um pequeno defeito de luz que encontro em fotografias antigas, sem saber bem onde se encontra o erro, se na lente, se na película, se em mim.
Risca a agulha um vinil emprestado há trinta anos que me não devolveram ainda. Ouço rádio, mas sem escutar. Rádio são réguas e lápis, pistolas de solda, cheiro a álcool etílico embebido em algodão, chávenas de café aquecendo círculos em jornais dominicais, beatas queimando mantas e, sobretudo, um sol trabalhador que horas depois dá lugar a uma amarelada luz com tosse.
Há algo de feminino naquele fumo que adensa o meu escritório e faz liquidificar os meus olhos, sob um frio painel de cristais líquidos. Há um turvar das cores turvas bebido de um ensonar de sons. Uma dor no meu peito. Sentei-me, grave, na cadeira de longa data, e mirei mirrado um ponto na parede.
Caíam-me lágrimas que não eram minhas. Distorciam meus quadros, serigrafias, calendário. Banhavam-me Abril, queimavam-me Agosto, e eis-me sem ver Maio, talvez para sempre.
Outra dor.
Puxei o telefone e disquei-o com dez anos. Disquei 112 no maravilhoso invento. Cento e doze, escreveria. Que bonita caligrafia a minha, orgulho de qualquer tia de cabelo preso. Falei a morada à voz – aquela onde cresci com dificuldade. A mesma gaguez de rua de quando crescia, triste rua agora.
Dei por mim ao Deus dará, enfeitado de um pijama, enjeitado numa maca quase cama, de peito num oito, rolando através do trânsito da noite. Quatro rodas de borracha e uma sirene, pensei fechando os olhos. Uma sirene, serena sirene, que se arrastava no tempo, e riscava faróis no espaço das estradas e autoestradas. Debatia-se meu tempo numa botija de desinfectado oxigénio… e lágrimas de meu corpo salgavam-me a boca babada.
Abri os olhos. Como que nadando num aquário em meu redor, flutuavam peixes com forma de pessoas. Ninguém me prestava atenção, salvo talvez a esverdeada serpente que saltitava no monitor, porventura contente por me ver vivo.
Pingavam-me os olhos para um bonito tecido que me vestiram. A branquidão do lençol trazia-me aquele conforto de mãe. Encostada, pacífica e elegantemente a mim, para minha paz, lá estava ela, a minha silenciosa salvadora – a intravenosa. Espreitava o catéter do meu braço. Pingavam-lhe as rigorosas doses acima de mim, num regulador transparente, que me doseava com olhar de mulher meus nutrientes e medicação. Pingava-me, portanto, o alimento num fluído transparente.
Onde conseguiria eu ver através da refeição se não aqui? Cores de almoços de domingo! Verdes, laranjas, até azuis bem temperados na salada, entre vermelhos mal passados, castanhas acastanhadas e brancos pastosos de arroz de alho. De alguma forma foram perdendo os pigmentos até nenhum terem. Meu estômago desolava-se tanto quanto eu, e esperávamos juntos, ambos vazios e ácidos na nossa inutilidade.
Guilherme Mesquita, Argumentista
guismesquita@gmail.com
Sem comentários:
Enviar um comentário